Akatsuki Games desenvolveu Kaiju No. 8 The Game junto ao anime e ao mangá e criou Sagan

A adaptação de um mangá para jogo quase sempre chega depois que o anime já está firme no ar. Kaiju No. 8: The Game quebrou esse padrão — o jogo foi desenvolvido praticamente em paralelo com a adaptação animada e com o mangá ainda no começo da jornada. Isso criou um desafio raro: mapear um universo em construção, casar visuais e design com estúdios que também estavam desenhando e, ao mesmo tempo, propor conteúdo original que respeitasse a obra de Naoya Matsumoto. O resultado é um título que dialoga com o mangá e o anime, mas que também se permite respirar por conta própria — com personagens exclusivos, mecânicas pensadas para jogabilidade moderna e uma abordagem de design que prioriza clareza e fidelidade ao conceito militar da série.

Desenvolvimento paralelo: riscos e oportunidades

Desenvolver um jogo enquanto o mangá ainda estava se estabelecendo e o anime começava a ser produzido trouxe prós e contras claros. Do ponto de vista técnico e de produção, a equipe da Akatsuki Games teve que trabalhar com referências incompletas e, muitas vezes, em fluxo contínuo: imagens, artboards e designs chegavam conforme o anime progredia e o mangá avançava. Isso gerou retrabalhos, ajustes de modelagem 3D e revisões constantes de ambientes e personagens.

“Quando o desenvolvimento deste jogo começou, o mangá ainda estava apenas começando. Então ainda havia muita informação que não sabíamos. E ao mesmo tempo, o mangá estava sendo adaptado para um anime. Isso tornou tudo muito difícil.” — Shinya Fujita

Essa dificuldade, porém, também abriu portas criativas. A parceria com Production I.G e Studio Khara permitiu que a equipe trocasse materiais e recebesse referências detalhadas — o tipo de documentação que faz uma grande diferença quando se está convertendo 2D em mundos 3D jogáveis. A colaboração não foi só técnica; foi curatorial: definir quais elementos visuais do anime funcionavam em tempo real e quais precisavam ser reinterpretados para a jogabilidade.

“Fiquei surpreso com o profundo conhecimento do Matsumoto sobre desenvolvimento de jogos e com o respeito dele pelo processo.” — Shinya Fujita

Esse comentário do produtor revela que o autor do mangá não foi apenas um licenciado distante, mas um parceiro que entendeu limitações e potencialidades do meio interativo. Ter o criador envolvido evita dissonâncias e assegura que mudanças — até mesmo originais — mantenham a coerência do universo.

Arte, fundos e a ponte com o anime

Os artistas 3D trabalharam com um fluxo diário de novas referências, muitas vindas diretamente da Production I.G. Isso significa que cenários e modelos passaram por iterações até que os visuais do jogo dialogassem com os visuais do anime sem sacrificar performance e clareza em combate.

“Recebemos muitos artboards da Production I.G. Todo dia checávamos quais eram os novos materiais. No início, às vezes percebíamos que nosso design 3D não batia com o artboard e então tínhamos que refazer. Não é que tivéssemos todo o material de referência desde o começo – tivemos que trabalhar bem próximos à Production I.G. Quando o local era exatamente o mesmo do anime, a Production I.G revisava também nossos designs.” — Kazushi Matsumoto (3D Artist)

Essa proximidade com os estúdios de anime garantiu consistência visual, mas também impôs restrições técnicas: converter uma paleta rica e linhas complexas para modelos e efeitos que rodem bem em consoles e celulares exige decisões de otimização, LODs e leitura de tela rápida — especialmente considerando que o jogo foca em batalhas com múltiplos kaiju e efeitos de área.

Áudio: inspirado, porém original

Uma área mantida deliberadamente separada foi a trilha sonora e os efeitos sonoros. Em vez de reaproveitar a música do anime, a equipe sonorizou o jogo com peças originais que respeitam o tom da franquia, usando elementos estilísticos que fãs reconheceriam, mas moldados para as necessidades do gameplay — loopings dinâmicos, variação por intensidade de combate e mixagem que privilegia clareza nos momentos de ação.

“Admiro profundamente a música excepcional do anime, e a equipe de som se inspira nela enquanto cria composições inteiramente novas, adaptadas especificamente para a experiência do jogo.” — Yasuaki Iwata (Sound Artist)

“Como a música reflete fortemente a individualidade do compositor, estruturamos nossa equipe cuidadosamente. Tivemos a sorte de contar com compositores experientes em jogos e também com compositores de música teatral, que são ótimos em complementar visuais… Centralizamos nossa música em gêneros como o rock digital japonês e instrumentação familiar aos fãs do IP e sua cultura. Mantivemos as melodias sutis para que não sobreponham a experiência, deixando que a música complemente e realce os visuais impressionantes.” — Mitsuhiro Hikino (Sound Director)

Essa estratégia mostra maturidade: entender que a trilha precisa servir ao jogo — modularidade, camadas que emergem conforme a intensidade do combate — e ao mesmo tempo carregar identidade. Afinal, em jogos de ação em primeira pessoa e shooters competitivos que eu curto, a mixagem é determinante para feedback do jogador; aqui, em um action-híbrido com kaiju, a clareza sonora é igualmente vital.

Personagens originais: Sagan e o equilíbrio narrativo

Akatsuki não só adaptou: criou. O ponto mais sensível quando se mexe em um universo em expansão é inserir personagens originais sem quebrar a coesão. A solução foi ancorar esses personagens diretamente a elementos estabelecidos e obter o aval do autor.

“Nós, os desenvolvedores, propusemos ideias ao Matsumoto-sensei. Queríamos criar um cenário único para o jogo, então concebemos o conceito de Portais Dimensionais de Kaiju que se abrem ao redor do globo, exigindo uma resposta total das forças anti-kaiju. A partir disso, criamos a história original e então a personagem Sagan Shinomiya.” — Shinya Fujita

Sagan foi pensada como figura-chave — a única original diretamente conectada ao elenco canônico — e sua existência tem impacto narrativo relevante: ela é apresentada como uma “irmã” não sanguínea de Kikoru, ampliando as dinâmicas emocionais sem contradizer as linhas principais do mangá.

“Sagan é muito importante porque é a única personagem original do jogo conectada ao elenco do anime/mangá.” — Shinya Fujita

No design visual houve debate: a indústria mobile japonesa costuma testar apelos estéticos mais provocativos para monetização, mas Matsumoto vetou essa abordagem.

“Trajes sexy… são bem comuns na indústria de jogos mobile japonesa. Quando propusemos isso, o Matsumoto-sensei disse ‘bem, não — esse não é o caminho para este IP.’ Então reestudamos o conceito do IP e tentamos criar designs únicos para o jogo.” — Yuya Kuroyabu (Art Director)

“A essência do design é o estilo militar.” — Yuya Kuroyabu

Essa decisão reforça identidade: os personagens continuam visualmente coerentes com a ideia de soldados da Japan Anti-Kaiju Defense Force (CLOZER), o que, além de respeitar o tom do autor, ajuda no gameplay — jogadores conseguem ler função e role apenas pela aparência.

Mecânica do protagonista: Kafka como medida de risco e recompensa

Kafka Hibino é um dos personagens mais intrigantes do mangá: simultaneamente humano frágil e kaiju devastador. No jogo isso foi traduzido como uma mecânica de transformação que muda radicalmente o kit do personagem.

“Após transformar-se, ele acessa habilidades poderosas como ataques em área e um Ultimate de alto dano, permitindo que jogadores sintam realmente sua força.” — Shinya Fujita

A transformação é binária: Kafka em humano é um suporte com pistola e utilidades; transformado, ele vira um monstro de combate corpo a corpo sem armas equipáveis. Essa alternância cria decisões de design interessantes — quando transformar? qual é o custo? como balancear tempo de transformação e resistências? — que impactam tanto jogabilidade quanto narrativa.

O que torna Kafka interessante para designers é que sua transformação não é um buff simples, mas uma troca completa de paradigma de jogo.

Além disso, a equipe criou uma versão standalone de Kaiju No. 8 que já começa transformada, com base stats altíssimos mas sem capacidade de equipar armas, garantindo diversidade de escolhas sem quebrar necessariamente o balanceamento.

“Embora essa versão não possa equipar armas como outros personagens, possui estatísticas base incrivelmente poderosas mesmo sem elas. Na prática, você pode pular o processo de adquirir ou evoluir armas; ele já é forte desde o começo.” — Shinya Fujita

Balancear um personagem assim num jogo com elementos de gacha e progressão é delicado. A intenção declarada pelos desenvolvedores é evitar que um único personagem se torne mandatório para progresso, preservando a liberdade dos jogadores.

“Nós queremos evitar situações onde um personagem específico se torne quase obrigatório para progredir, ou onde os jogadores não possam usar livremente os personagens que realmente querem jogar.” — Shinya Fujita

Sistemas de classe e design de roles

Os personagens foram organizados em três categorias: Attacker, Support e Defender. Esse escopo clássico é eficiente para jogos de combate baseado em times, permitindo composições claras e sinergias previsíveis. O elenco canônico, majoritariamente ofensivo, deixou espaço para que as criações originais (Sagan, Chester, Suited) preencham lacunas de suporte e defesa, aumentando as possibilidades táticas.

Isso também tem impacto direto na composição de squads: jogadores que preferem “time de ataque” podem combinar atacantes para dano massivo, enquanto squads balanceados garantem mais alternativas em lutas contra múltiplos tipos de kaiju com status variados.

Monetização e preocupações de live service

Live service com gacha é terreno sensível — especialmente quando fãs esperam poder jogar com seus personagens favoritos sem pagar fortemente. A equipe adotou medidas para oferecer caminhos de aquisição mais amigáveis: personagens raros podem ser oferecidos em escolhas como recompensa e o jogo distribuiu personagens chave no lançamento como formas de reduzir barreiras.

“Nossa meta é que fãs aproveitem jogar com seus personagens favoritos, mesmo que isso impacte a raridade. Fornecemos mais oportunidades para usuários casuais colecionarem personagens e curtirem o jogo.” — Shinya Fujita

Além disso, eventos de pré-registro entregaram personagens gratuitos, uma boa prática para construir base de usuários e mitigar frustração inicial. Ainda assim, a dinâmica de economia de um jogo assim exige transparência de drop rates, opções para jogadores PVE e PVP, e conteúdo que mantenha o engajamento sem forçar repetição ou pay-to-win.

Design de kaiju: leitura visual e função em combate

No núcleo do jogo está o design dos kaiju: o time planejou entre 20 e 30 gêneros diferentes, cada um com identidade visual e mecânica distinta. A filosofia central foi a da clareza — as habilidades dos kaiju devem ser dedutíveis a partir de sua aparência.

“Nossa filosofia central para este jogo é priorizar clareza, então tentamos dar habilidades aos kaiju que possam ser inferidas pela sua aparência. Por exemplo, kaiju do tipo fúngico podem infligir estados como envenenamento, enquanto os do tipo aranha podem usar teias para reduzir sua velocidade.” — Shinya Fujita

Isso é design eficiente: jogadores aprendem a reagir baseados em pistas visuais, o que é crucial em lutas que frequentemente combinam múltiplos tipos com efeitos concordantes. Inspirado pelo Tokusatsu, o time usa ângulos de câmera baixos e silhuetas imponentes para transmitir escala — algo que, em um jogo, também funciona como feedback: tamanhos e formas comunicam prioridade de ameaça ou pontos fracos.

Um destaque do time foi a recriação completa do Kaiju No. 1 — uma criatura que no material original aparecia apenas de busto, deixando o resto à imaginação. Revelar o design completo no jogo é uma jogada estética e marketing que entrega algo novo aos fãs.

“O que quero destacar é o Kaiju No. 1. Esqueci em qual episódio apareceu, mas apareceu apenas do busto — ninguém sabia como era o resto… e agora nós o desenhamos; você pode descobrir no jogo! Também usamos esse kaiju como um dos nossos visuais-chave. É especial para mim.” — Yuya Kuroyabu

Conteúdo e roadmap pós-lançamento

Com o lançamento, a equipe já mencionou planos claros: histórias de evento para aprofundar personagens, modos de batalha de alta dificuldade para os caçadores de desafio e eventos sazonais com roupas especiais (sempre coerentes com a visão do autor). Esses tipos de conteúdo são fundamentais em um live service para manter relevância e dar motivos para jogadores voltarem.

“Estamos planejando histórias de evento que deixem os jogadores conhecerem melhor personagens individuais, junto com conteúdo de batalhas de alta dificuldade para quem busca mais desafio. E, claro, planejamos eventos de história com personagens em trajes sazonais.” — Shinya Fujita

O cuidado em não transformar as roupas sazonais em algo que desvirtue o tom da franquia foi reiterado. Expectativa e respeito ao IP são apontados como pilares da gestão do jogo.

“A coisa mais importante é ter amor pelo IP. Ser fã ajuda a entender o que outros fãs querem.” — Shinya Fujita

Manter a integridade da obra enquanto se traz novidades exige disciplina criativa — e é exatamente isso que define a abordagem do time.

Para quem vem do mundo dos shooters competitivos e FPSs de alto desempenho, a mensagem é clara: Kaiju No. 8 toma decisões conscientes entre espetáculo visual e feedback de jogabilidade. Os kaiju são desenhados para serem compreendidos; as músicas servem a ação; e os personagens, ainda quando originais, se encaixam como peças num tabuleiro já conhecido.

E então? Você prefere um elenco ultra fiel ao original ou curte quando um jogo se arrisca a expandir o universo com conteúdo novo? Kaiju No. 8: The Game se posiciona no meio: é reverente, técnico e — quando precisa — inventivo. Se a proposta foi bem executada? Depende do quanto você valoriza fidelidade versus inovação. De qualquer forma, a iniciativa de desenvolver em paralelo com o anime e com o mangá trouxe um título que é, ao mesmo tempo, fan service pensado e experiência própria, com mecânicas que justificam existir no formato de jogo.

Agora, resta acompanhar como o live service evolui: se as promessas de balanceamento, conteúdo e respeito à obra serão mantidas ao longo dos ciclos. Para fãs que buscam mais do universo Kaiju No. 8, o jogo entrega novas perspectivas visuais, personagens com peso narrativo e combates que exploram o design de kaiju de maneira pragmática e divertida. Para os que chegam de fora, a clareza do sistema de classes, a leitura visual dos inimigos e a trilha sonora adaptada devem fazer o trabalho de apresentar o mundo sem precisar devorar o mangá ou ver o anime primeiro.