Seguir um roguelite focado em personagens que praticamente não deixou defeitos — como Hades — não é tarefa simples: dá para aumentar a ambição sem transformar tudo num entulho inchado? Dá pra apertar uns parafusos sem alisar demais a textura que tornou o jogo especial? Onde é sagrado e precisa ficar intacto, e onde faz sentido remixar? Hades 2 resolve essas equações com a mesma precisão artesanal da Supergiant Games — há poucas notas fora do lugar. Se você não jogou o primeiro Hades recentemente (ou nunca jogou), Hades 2 pode te jogar numa maré rápida: você é apresentado à Melinoë, filha de Hades e Perséfone e irmã do herói do jogo anterior, Zagreu, e já sai com a missão urgente de matar o avô, Cronos, o Titã do Tempo. Confesso que, como tinha evitado o early access e fazia anos desde minha última corrida em Hades original, os primeiros dois ou três ciclos me deixaram um pouco à deriva. Mas isso passa rápido quando o jogo começa a te oferecer camadas novas — e eu digo camadas no sentido técnico e narrativo.
“Hades é um rogue-lite sem igual que estabelece o padrão ao combinar criativamente gêneros diferentes e usar suas forças de maneiras inesperadas. Sua mistura de ação precisa, inúmeros modificadores que aumentam a rejogabilidade, interações tipo simulador de namoro e transformar falhas em progresso narrativo resulta num todo maior que a soma das partes. Hades lida com a bagagem milenar dos personagens clássicos pela lente contemporânea, como se fosse uma série animada à frente do seu tempo. Estou com mais de 50 horas, 70 tentativas de fuga e não consigo parar de pensar na próxima ida ao Inferno. Hades é uma experiência que não quero que acabe.” — Nick Limon
Personagens e escrita: a arte continua no topo
Se a Supergiant já batia no pico com o elenco original, Hades 2 sobe mais um degrau. A galeria de novos rostos é excelente: visuais com silhuetas marcantes, uso de cor que chama atenção sem gritar demais, releituras de mitos inteligentes e pequenos detalhes para os fãs mais nerds — você percebe que cada sprite, cada expressão está calibrada. Os personagens continuam representados por imagens estáticas, mas agora com microanimações sutis que dão vida — o brilho verde no lábio inferior da Mel, por exemplo, é um toque pequeno que transforma.
Dos novatos, Nemesis se destaca. A presença física do avatar da vingança é imponente, mas seu arco de rivalidade para aliado e possível interesse romântico se desenrola com camadas. Hécate assume uma posição de mentora e cuidadora relutante; ela sempre teme ser comparada à mãe da protagonista, mas quer, secretamente, chamá-la de filha. Até os deuses do Olimpo ganham profundidade além do arquétipo. E o trabalho de dublagem? De alto padrão do começo ao fim — entrega emocional e química que elevam a escrita.
Hades 2 acerta onde precisava crescer sem virar um Frankenstein de ideias.
Design de progresso e a mala semântica do roguelite
A estrutura de progressão é onde o jogo talvez faça seu movimento mais inteligente: Mel tem duas rotas por noite, depois que você destrava a segunda — descer para Tartarus e buscar Cronos, ou subir para romper a siega em torno do Monte Olimpo. Cada rota tem quatro regiões com seus próprios chefes. Mas o truque não é só isso: os mapas não são lineares — na superfície, em Ephyra, por exemplo, existe uma praça com 10 ruas com combates diferentes, e você escolhe quais seis encarar para derrubar uma barreira. Isso quebra a rotina “porta A ou porta B” em algo mais granular e estratégico. Quer evitar um chefe que te deixa maluco? Muda de rota por algumas corridas e volte quando estiver mais forte. Claro, eventualmente você precisará vencer ambas para fechar a história, mas ter essa liberdade duplica a sensação de variedade entre runs.
Aos jogadores que gostam de sistemas interligados: a progressão permanente continua robusta. Há upgrades fixos (a panela da Hécate é um dos exemplos), desafios especiais enviados pelo Caos, uma revisão esperta do antigo sistema de Heat, um minigame de farming simples e familiares animais que ajudam dentro e fora do combate. Tudo é apresentado em um ritmo que expande a complexidade sem te deixar atordoado.
A sensação de progresso permanente continua sendo o motor emocional do jogo.
Você ainda recebe pilhas e pilhas de diálogos: reações a eventos da última run, comentários baseados nas bênçãos que carrega, interações novas com combinações específicas de personagens — o volume é absurdo, de um jeito bom. Isso não só enriquece a narrativa como transforma cada fracasso em um micro-capítulo da sua história com Mel.
Jogabilidade, armas e boons: a magia refinada
Melinoë joga de um jeito que me lembra uma “classe” diferente dentro do mesmo RPG. Se Zagreu era um guerreiro que punha a cara pra bater, Mel é uma maga/feiticeira com ênfase em controle de campo e gestão de mana. As armas mudam radicalmente a abordagem: um par de tochas giratórias transforma você numa dançarina mortal; um machado colossal recompensa timing com dano massivo. Cada arma tem variações desbloqueáveis — transformar o machado em uma foice, por exemplo — e essas transformações não são meros reskins; alteram funcionamento e estratégia.
Há também a habilidade Cast, independente de arma: uma armadilha mágica que prende inimigos em círculo, desacelera e causa dano. Muitos inimigos novos são desenhados para obrigar você a pensar onde e quando armar essa armadilha. Isso força um jogo posicional mais tático do que o “só girar e atirar” que pode surgir em outros roguelites.
O sistema de bênçãos dos deuses foi polido, quase como se os designers tivessem lido todos os feedbacks do primeiro Hades e os filtrado. Hoje não existe mais um símbolo olímpiano que eu rerolle sem pensar: todos têm opções legais. Hermes continua excelente para quem curte mobilidade, embora não tão dominante como na era de Zagreu. Poseidon ganhou utilidade em coisas como acelerar a coleta de recursos — uma escolha de design que liga mecânica à progressão de forma elegante.
A novidade interessante é o esquema de afinidades elementais: boons concedem essências elementais, e certas habilidades só disparam se você acumular uma determinada combinação. Isso adiciona uma camada metagame na construção de builds: não basta pegar o boon entendido isoladamente — você precisa planejar a composição para acionar efeitos sinérgicos.
Selene se destaca entre deuses e titãs: suas bênçãos lunares dão acesso a um “Hex”, uma ultimate que pode, por exemplo, desacelerar o tempo ou soltar energia lunar devastadora. Cada vez que você escolhe Selene, você investe pontos numa árvore de talentos semi-randômica para aquele Hex — aumentando duração, dano, velocidade de recarga e outras modificações criativas. Isso transforma a busca por sinergias em uma exploração quase distinta por si só: pescar builds absurdamente poderosas virou hobby.
Quer mais diversidade? Inimigos e chefes têm padrões inteligentes e elementos que exigem adaptação. Chegar com a mesma estratégia a todo encontro já não é tão viável. E é isso que mantém cada corrida relevante: você inventa táticas, testa combinações, aprende e volta com outro foco.
Áudio, trilha e direção de arte: o pacote estético
Dá pra falar horas sobre direção de arte: paleta consistente, contraste onde precisa, efeitos visuais que comunicam informação útil — não é só bonito, é utilitário para o gameplay. As microanimações nas telas de diálogo aumentam a imersão sem custar desempenho excessivo.
No som, Darren Korb volta com força. Sua mistura de motivos melancólicos, batidas lo-fi e momentos épicos criam um espaço sonoro único. Uma das faixas novas, Moonlight Guide Us (com Ashley Barrett e Judy Alice Lee nos vocais), tem uma harmonia que chega a mexer comigo. E o combate contra a Scylla e as Sereias? Um pop-rock banger que muda conforme você elimina os membros da banda inimiga — e isso não é só espetáculo: altera a dinâmica do combate. Hades 2 sabe ser hilário e melancólico no mesmo compasso.
Desempenho e experiência em plataformas
No PC e no Xbox Series X o jogo roda muito bem: animações, efeitos e taxa de atualização se comportam de forma consistente, resultando em um combate responsivo — essencial num título com tanto foco em precisão. Já testei também no Switch 2 (aproximadamente 10 das 50 horas foram por lá). A versão do Switch 2 que joguei era praticamente idêntica à do Switch original porque o pacote de upgrade só ficou disponível no lançamento. Em docked a experiência é sólida, mas no modo portátil há pequenas dores de leitura: em encontros de chefes onde a direção de fuga de um inimigo menor importa muito, a perspectiva mais distante pode dificultar saber pra que lado ele está virado. E olha que tenho visão bem além da média — então se você joga no portátil, planeje alternar para o dock nas lutas mais duras.
Questões técnicas que observei: o jogo é eficiente no uso de partículas e efeitos — muitos jogos do gênero se perdem em fumaça visual, mas Hades 2 equilibra estética e clareza. Isso é especialmente importante quando o campo de batalha enche de armadilhas, projéteis e habilidades com cooldowns curtos. A clareza visual é design de interface tão essencial quanto escolher o hitbox certo para um ataque.
Dicas práticas e considerações táticas
– Escolha de arma: trate a escolha de arma no começo da run como uma declaração de intenção. Se quer controlar espaço e forçar posicionamento, vá de tochas. Para uma abordagem mais explosiva e timing, escolha a arma pesada. Sempre considere as variações desbloqueáveis — elas mudam rotas de build.
– Gestão de mana: Mel exige atenção à mana. Usar a Cast em momentos errados é desperdício; usá-la em momentos certos vira ferramenta de domínio de campo.
– Combo com boons: pesque afinidades elementais quando elas se alinham com a sua arma/estilo. Às vezes vale sacrificar um buff de dano momentâneo por uma afinidade que destrave uma habilidade ultimate mais consistente.
– Alternar rotas: se um boss ou uma área está te matando repetidamente, mude de rota. Farm de recursos em UVs (recursos de progressão) pode ser a chave para voltar com maior poder e experimentar novas sinergias.
– Familiar e minigame: não despreze os familiares — alguns oferecem buffs permanentes e utilidades fora de combate que aceleram progresso a longo prazo.
Algumas curiosidades e pequenas vitórias de design
– As ruas de Ephyra e seus múltiplos caminhos são um ajuste fino brilhante: você escolhe riscos e recompensas com granularidade, não só trocando entre duas portas.
– A árvore de Hex de Selene é um mini-sistema dentro do jogo, incentivando reruns focados em maximizar uma habilidade concreta.
– O volume de diálogo e a reatividade dele ao que você fez na última corrida transformam a progressão narrativa numa experiência quase de TV episódica — sempre tem uma nova cena, sempre tem um pequeno ajuste de relacionamento.
Falando como jogador: o que me prende
Por que eu volto? Pela combinação de combate preciso com camadas de meta-progresso e por personagens que realmente importam. Hades 2 mantém o loop viciante: você morre, volta, desbloqueia algo novo, prova uma combinação diferente e fica curioso sobre o próximo pedaço de história. Há ainda bastante para descobrir: 50 horas não foram suficientes pra ver tudo. E isso é intencional — o design incentiva exploração de builds e relacionamentos sem saturar.
E tem humor. Hades 2 consegue fazer rir alto e, em seguida, te levar pra uma sequência melancólica que te puxa o peito. Equilíbrio emocional difícil de atingir — mas a Supergiant domina.
Para quem é este jogo?
Se você curte shooters com precisão e resposta, Hades 2 vai te agradar: a sensação de controle e timing é central. Jogadores que amam construir builds, testar interações e explorar narrativa em camadas vão achar aqui uma mina de ouro. Se você prefere experiências mais lentas e contemplativas, o ritmo das runs e a necessidade de adaptação pode ser cansativo — mas ainda assim a escrita e a arte compensam.
Últimos acertos e pontos a observar
Há pouquíssimos deslizes: a apresentação inicial pode ser abrupta para quem nunca viu o primeiro jogo. Algumas lutas em portátil exigem uma atenção maior por causa do zoom e da leitura dos inimigos. Fora isso, é muito difícil apontar falhas graves: Hades 2 é polido, coeso e divertido de jogar.
Eu volto à pergunta do início: como seguir algo quase impecável? A resposta da Supergiant foi reconhecer o que era essencial e ampliar com sistema novos que adicionam profundidade sem complicar demais. O resultado é um roguelite que se sente simultaneamente familiar e renovado, cheio de descobertas técnicas e narrativas esperando para serem desvendadas.
Se você ainda não entrou nesse mundo com Mel, prepare-se para ajustar suas prioridades de build, aprender a dominar posicionamento e, sobretudo, se apaixonar por um elenco novo tão bem escrito quanto o original. A jornada é desafiante, generosa em recompensas e musicalmente impactante — mais um capítulo brilhante para a Supergiant Games.