Como Kingdom Come: Deliverance 2 Virou Filme de Festival

Se você largou o controle neste ano para ir pisar numa grama – literalmente – talvez tenha percebido algo fora do comum nos grandes festivais de cinema mundo afora. Em maio, foi a vez de Exit 8, adaptação de um game indie japonês que viralizou, estrear em Cannes: o primeiro longa baseado em videogame a pisar no tapete vermelho mais célebre. A direção de Genki Kawamura deu um giro estrutural interessante, agradando tanto o público de arte quanto os fãs de jogatina. Mas adaptações live-action de jogos não são novidade, certo? Então, o que faz Kingdom Come: Deliverance 2 Cinematic Cut se destacar? Não é um filme live-action e nem um documentário: é o próprio jogo – ou parte dele – reeditado para caber em duas horas lineares de projeção.

Um experimento cinematográfico no Karlovy Vary

Kingdom Come: Deliverance 2 Cinematic Cut foi apresentado como ‘Special Presentation’ no Karlovy Vary International Film Festival (KVIFF), na República Tcheca, em meados de junho. Em vez de filmar atores fantasiados de cavaleiros, a ideia foi pegar o primeiro ato do RPG da Warhorse Studios, combinar cenas pré-renderizadas com trechos de gameplay e montar uma experiência próxima ao cinema convencional. O curioso? Não partiu da própria Warhorse. “Tudo começou no lançamento oficial de Kingdom Come: Deliverance 2. O primeiro contato rolou por um amigo em comum, e Warhorse e KVIFF concordaram que queriam colaborar em algum momento. Nos meses seguintes, foi empolgante vislumbrar o que a Warhorse representa – e ouso dizer que eles sentiram o mesmo sobre nós, no topo do mercado de jogos.” contou Karel Och, diretor artístico do festival.

A estratégia do KVIFF era ambiciosa: atrair um público mais jovem e descolado, mostrando que um festival de cinema pode dialogar com outras mídias. “Eles queriam tornar o festival mais moderno e interessante – oferecer algo novo.” explicou Tobias Stolz-Zwilling, diretor de comunicação da Warhorse. Foi um casamento perfeito: o maior evento de cinema da Europa Oriental ganha frescor; a desenvolvedora ganha relevância cultural junto a cinéfilos que talvez nunca tivessem olhado para um game medieval.

Da ideia à montagem

Por trás das câmeras ‘virtuais’, está Petr Pekař, diretor de cinematics da sequência. Formado em edição e direção de cinema, Petr quase enveredou pela filmografia tradicional, mas encontrou seu lugar criando cutscenes – aquelas pequenas “películas animadas” que emulam o cinema dentro dos jogos. “Tem muitos cineastas na República Tcheca, mas o mercado é pequeno e meio saturado. Felizmente, há vários estúdios produzindo cutscenes, que são basicamente filmes animados.” Petr começou fazendo cenas para Mafia 3 e, em seguida, entrou na Warhorse como designer de cinematics no primeiro Kingdom Come antes de assumir a função de diretor no 2.

O desafio era converter uma experiência interativa e não linear em um programa passivo e linear. Em vez de cada um apertar botões e matar dragões, o espectador se senta para acompanhar uma montagem que busca equilibrar ritmo, narrativa e intensidade de combate. A Cinematic Cut abre com a primeira cena do jogo, aquela sequência épica de cerco ao castelo que lembra O Senhor dos Anéis de Peter Jackson – influência declarada da estética Warhorse. Quando a tela escurece, já dá para perceber a familiaridade: são planos grandiosos, iluminação dramática e até composições de enquadramento que homenageiam o high fantasy.

Mas é a transição da narrativa para a parte de gameplay que chama a atenção. Logo depois do prólogo exibido como se fosse um trailer, entra Father Godwin empunhando sua besta. Em vez de ficar preso àquele estilo troncho de “Let’s Play”, a edição faz cortes rápidos: *Godwin se aproxima da escadaria – corte – já está na metade – corte – no topo da muralha, cravando a espada no inimigo*. O resultado é uma sensação de adrenalina quase cinematográfica, como se fosse uma cena de ação rigorosamente coreografada e não um jogador apertando X para rolar no chão.

Esse efeito glamouroso não surgiu por acaso. A maior parte do gameplay foi gravada por Vítek Mičke, especialista em marketing da Warhorse. “Ele também faz os trailers e tem um ótimo senso de timing e estética. Sabe controlar a câmera do controle para criar o clima certo – fica muito maneiro.” A escolha de planos, os movimentos de câmera e os enquadramentos foram pensados para manter o espectador preso à história, e não lembrá-lo de que ali se poderia apertar botões e desviar de flechas.

Apesar do cuidado, alguns solavancos acontecem. Em um trecho, a câmera corta de repente para uma escada descendo, dando a clara impressão de que um gameplay está virando cutscene. Esses rarefeitos exibem a origem interativa do material, mas são tão pontuais que acabam ressaltando o quão bem a equipe trabalhou no resto. O curioso é que esses “bugs” tornam tudo mais humano – um lembrete de que esse formato ainda está no campo experimental.

“Acho que é um experimento que alguém pode pegar e fazer melhor – ou talvez nós revisitemos essa ideia em futuros projetos, aprendendo com nossos erros.” refletiu Pekař. Ele admitiu ter ficado surpreso: ver o jogo inteiro projetado num cinema “segurou” bem a atenção do público. Não é um novo gênero audiovisual pronto para competir com cinema ou TV, mas funciona em festivais, convenções e, principalmente, para fãs que curtem encontros fora da curva.

A recepção do público do KVIFF foi positiva. A equipe do festival vibrou ao ver que a proposta gerou diálogos entre cineastas e gamers. “A narrativa tem muitos rostos. Temos orgulho de ter escrito um novo capítulo na história moderna do festival, em colaboração com pessoas que respeitamos e que têm o mesmo objetivo.” destacou Karel Och.

Para Petr, o acerto está na ponte que esse formato constrói: “Os gamers passam a apreciar estética, cinematografia, paletas de cores e climas que antes eram exclusividade de filmes. E os cinéfilos entendem como o cinema muda de função quando acompanha interatividade. Quando essas duas mídias se encontram, surgem ideias bem estranhas e incríveis. Sair da bolha para ver algo diferente ajuda a gente a entender a linguagem um do outro.”

Ao disponibilizar o Cinematic Cut no KVIFF.TV até julho de 2027, a Warhorse espera alcançar não só fãs, mas também estudiosos e criadores de conteúdo. Será que esse formato vai se espalhar por outros estúdios? Será que veremos “Cinematic Cuts” de shooters competitivos ou battle royales? Por enquanto, a experiência de Kingdom Come: Deliverance 2 marca o início de um diálogo promissor, onde cliques, cutscenes e cortes cinematográficos se unem para contar histórias de maneira inédita.