Halo usado em anúncio do ICE com 26 milhões de views, Marcus Lehto chama de ‘abominável’

Imagens geradas por IA usam Halo para propaganda política, gerando críticas dos criadores e desafios legais, éticos e culturais para a Microsoft e a indústria de jogos.
Escrito por:
Lucas Amaral

A recente onda de imagens geradas por IA que colocam figuras políticas dentro de universos de jogos estourou uma discussão que vai muito além do meme: envolve propriedade intelectual, responsabilidade de grandes estúdios e — claro — limites éticos do uso de artefatos culturais para fins de propaganda. No centro disso está Halo: uma franquia que moldou a prática de jogos de tiro em primeira pessoa e agora se vê no meio de uma campanha governamental que usa sua iconografia para promover ações do Departamento de Segurança Interna dos EUA (DHS) e do próprio Gabinete da Casa Branca.

A cereja do bolo foi a imagem do Presidente Trump como Master Chief, em frente a uma bandeira com 40 estrelas, postada pela Casa Branca e vista mais de 43 milhões de vezes. Pouco depois, o DHS usou a estética de Halo em posts direcionados a recrutamento do ICE, com frases do jogo como “destroy the Flood” e “finishing this fight” — o que, traduzido para o contexto, compara imigrantes com a infame ameaça parasitária do universo Halo. Esse post do DHS chegou a 26 milhões de visualizações. É uma apropriação simbólica que beira o abuso — e faz parte de um padrão já visto do governo em usar imagens de IA para construção de narrativa.

O impacto nos criadores originais foi imediato. Marcus Lehto, ex-diretor de arte de Halo: Combat Evolved, falou com o Game File e não poupou palavras: “É absolutamente abominável. Me deixa enjoado ver Halo sendo cooptado assim.” — Marcus Lehto. Jaime Griesemer, outro nome chave no design da campanha original, também criticou fortemente o uso: “Usar imagens de Halo em um chamado para ‘destruir’ pessoas por seu status migratório passa dos limites e deveria ofender qualquer fã de Halo, independentemente da orientação política. Eu pessoalmente acho isso desprezível. A Flood são parasitas zumbis espaciais e não são uma alegoria para qualquer grupo de pessoas.” — Jaime Griesemer.

A reação não é só emocional; é técnica e simbólica. Halo tem camadas narrativas deliberadas, mecânicas de design voltadas ao contraste entre herói, hierarquias religiosas fictícias (os Profetas), e uma ameaça biológica (a Flood). Interpretar essas entidades como representações diretas de grupos reais é um salto narrativo que descaracteriza o trabalho dos desenvolvedores. A questão não é só “isso pode?”, mas “isso deveria?”. Qual o custo cultural de transformar um símbolo de entretenimento em ferramenta de desumanização?

Do ponto de vista legal e estratégico, as opções são escuras. Microsoft, dona da franquia Halo e responsável pelo anúncio recente do remake Halo: Campaign Evolved — previsto para 2026 no Xbox Series X|S, PC e pela primeira vez no PlayStation 5 —, permaneceu em silêncio enquanto a polêmica se espalhava. A postura contrasta com a da The Pokémon Company, que em situação similar emitiu nota pública dizendo que não participou da criação do material e que não concedeu permissão para o uso de sua propriedade intelectual: “Estamos cientes de um vídeo recente postado pelo Departamento de Segurança Interna que inclui imagens e linguagem associadas à nossa marca. Nossa empresa não participou da criação ou distribuição deste conteúdo, e permissão não foi concedida para o uso de nossa propriedade intelectual.” — The Pokémon Company International.

Mas é aí que entra a complexidade real: processar agências governamentais por uso indevido de IP envolve questões de imunidade soberana, discurso político protegido e, para conteúdo gerado por IA, uma zona cinzenta de autoria. Steven McGowan, ex-diretor jurídico citado pela IGN, resumiu a situação com pragmatismo: “Eu não mexeria com isso por alguns motivos. Primeiro, pense em como o nome da The Pokémon Company quase não aparece na imprensa. Eles são extremamente avessos a publicity. Mesmo se eu estivesse na empresa, não tocaria nisso — isso vai passar em alguns dias e eles preferem deixar.” — McGowan, ex-chefe jurídico e agora principal na Extreme Grownup Services. Isso explica por que grandes corporações optam por resposta pública mínima: qualquer reação pode amplificar a narrativa que elas preferem enterrar.

E o que a Microsoft pode realmente fazer? Existem algumas vias:
– Notificação de violação de marca / pedido de remoção: eficaz em plataformas privadas, mas limitado quando o emissor é uma conta governamental oficial.
– Ação jurídica: cara, lenta, incerta; imunidade governamental e defesas baseadas em liberdade de expressão compõem uma barreira considerável.
– Campanha pública de posicionamento: rápida para reparar imagem, mas politicamente carregada e potencialmente custosa em relações institucionais.
– Ajustes técnicos e comunicacionais no lançamento do remake: reforçar a identidade de marca e colocar disclaimers, material oficial que ressignifique símbolos.

Além disso, há o fator cultural: a viralidade dessas imagens indica que o público se engaja com essa estética, mesmo quando ela é usada de forma contestável. O estúdio precisa cuidar não só do aspecto jurídico, mas da narrativa em torno do jogo — como vai posicionar o universo Halo frente a interpretações políticas? Como manter a integridade do trabalho sem entrar em uma disputa que pode se arrastar por anos e diluir foco no lançamento do jogo?

Há ainda o precedente: o governo já usou IA para criar imagens de líderes em papéis simbólicos (Trump como Papa, como Superman, como Jedi). Cada exemplo empurra a discussão de quem controla a representação cultural digital. E mais: quão rápido as empresas de jogos devem reagir quando sua arte vira ferramenta de propaganda?

No fim das contas, estamos falando de tecnologia (IA), cultura popular (franquias icônicas) e política colidindo de forma que expõe lacunas legais e éticas. Para quem é fã e também consumidor exigente: como você quer que as produtoras respondam quando suas criações são usadas assim? Eles devem silenciar para evitar escalada, processar e correr o risco de ser politizados, ou responder firme para proteger a imagem e valores da obra?

O debate vai seguir aberto enquanto Halo e outras franquias continuarem a ser símbolos culturais visíveis e facilmente manipuláveis por IA. O que acontece a seguir — se Microsoft opta por silêncio estratégico, resposta legal ou posicionamento público — vai dizer muito sobre como a indústria de jogos pretende proteger sua propriedade cultural no futuro próximo.