Hell is Us entrega 38 horas de narrativa crua, puzzles e um mundo sem mapa

A velha máxima diz que a guerra nunca muda — mas o que acontece quando as atrocidades humanas ganham forma monstruosa e prendem pessoas em loops temporais dos piores momentos delas? Hell is Us pega essa premissa e a transforma numa visão quase futurista, sombria e muito humana do horror. Mesmo que o ato de atravessar hordas de monstros e quebrar puzzles não reinvente o gênero action-adventure, o jogo me prendeu por cerca de 38 horas graças a um equilíbrio interessante entre combate simples, quebra-cabeças inteligentes e uma narrativa que não tem medo de mostrar o lado mais sujo da humanidade.

Puzzles, exploração e a irritante ausência de mapa

O começo é desorientador — e propositalmente. Você, como Remi, volta para Hadea atrás de respostas sobre sua família desaparecida e encontra um país despedaçado, sem mapa, sem waypoints, sem “vá até aqui” brilhando na tela. Isso força uma mudança de mentalidade: nada de seguir setas; tudo exige prestar atenção nas pistas visuais, nas conversas e, francamente, em cadernos físicos ou anotações no celular. Eu tive que literalmente reaprender a me localizar em jogos, como quem tira as rodinhas da bicicleta e toma alguns tombos até pegar o jeito. No começo é irritante, mas lá pelo meio do Ato Um a curva de aprendizado vira a seu favor — você começa a identificar padrões de breadcrumb e a decifrar onde procurar com muito mais rapidez. Sem mapa, você acaba obrigatoriamente atento ao mundo — cada conversa, cada placa e cada item tem potencial para resolver a próxima etapa.

O design de puzzles fica bem na linha entre óbvio e desafiador. Tem de tudo: alinhar símbolos, decifrar cofres, entregar itens específicos, chaves coloridas, placas de pressão… a execução é clássica, e por mais que eu só tenha resolvido cerca de três quartos dos enigmas até onde joguei, a maioria das soluções variou entre “ok, fazia sentido” e “puxa, precisa pensar nisso”, sem me deixar preso por horas em nenhum ponto específico. O problema real surge quando você não sabe se já coletou tudo que precisa, porque muitos itens só aparecem mais tarde na história — e Hell is Us não gosta de acompanhar automaticamente o que falta em cada puzzle ou missão. “A única parte levemente frustrante de alguns puzzles é que você nem sempre sabe de cara se tem tudo o que precisa para resolvê-los, ou se certas peças-chave sequer estão disponíveis ainda, já que muitos itens só aparecem quando você avança.” — Lucas Amaral Sem essa triagem automática, quem não faz anotações corre sério risco de andar em círculos entre áreas que só parecem conectadas até perceber que está faltando algo que ainda não conseguiu desbloquear. É uma camada de realismo e desafio que vai agradar quem curte meticulosidade — e vai incomodar quem prefere fluxo constante.

Mundo e narrativa: guerra, propaganda e vitriol humano

Se o jogo fosse só monstros e quebra-cabeças, já estaria bacana; mas o que realmente gruda na cabeça depois dos créditos é a construção do mundo. Hadea é uma nação dividida entre duas facções — os Palomists e os Sabinians — que se culpam mutuamente por tudo, com cidades marcadas por propaganda, execuções e violência sistemática. As conversas com NPCs são um capítulo à parte: diferentes pessoas oferecem narrativas diretas, sem floreios, sobre a guerra, seus horrores e sua própria moralidade. Isso dá uma sensação crua de autenticidade, às vezes desconfortável — porque a brutalidade ali não é só monstros, é gente mesmo. “Hell is Us veste sua visão sombria de uma civilização colapsada e sua população em luta nas mangas. Cada NPC pode ser questionado sobre Hadea, a guerra, os peacekeepers, as criaturas Hollow, e tanto os Palomists quanto os Sabinians.” — Lucas Amaral

Essas conversas não avançam rotas ou quests, mas constroem contexto e empatia — e, honestamente, jogam um espelho na nossa realidade. Há momentos em que é difícil usar videogame apenas como escapismo, porque a representação de execuções, cartazes de ódio e relatos de sobreviventes bate forte. Ainda assim, ignorar essas histórias soaria cínico. Elas não estão ali só para chocar: alimentam mecânicas centrais do jogo e explicam porque certos lugares estão presos em loops temporais. A forma como Hell is Us usa lore ambiental — cartas, murais, trocas com personagens — é consistente: cada pedaço que você encontra tende a encaixar na linha temporal da tragédia e a explicar por que a população reage com tanto rancor.

Loops temporais e guardiões: um design que combina narrativa e recompensa

Os loops de tempo são um dos elementos mais criativos do jogo. Eles são esferas de energia negativa que surgem em locais onde ocorreram atrocidades — execuções públicas, massacres, traições — e que mantêm a área presa em uma repetição maléfica. Para “limpar” um loop, é preciso derrotar os guardiões associados, e a recompensa não é só narrativa: limpar loops pode fornecer itens-chave para puzzles, upgrades de arma e, pragmaticamente, impedir que inimigos daquela zona respawnem. Isso cria uma escolha táctica: enfrentar um loop agora e ganhar segurança local, ou evitar e seguir adiante, correndo o risco de voltar depois com mais recursos. Isso transforma áreas opcionais numa mistura de contenção de ameaça e caça ao tesouro — se você curte fechar tudo, vai se sentir recompensado; se prefere ir direto ao ponto, pode pular sem perder a história central.

Os guardiões não são uma coisa impressionantemente memorável. Eles surgem como versões mais fortes das Hollow comuns — mais vida, danos maiores — mas, na prática, muitos foram tão fáceis que só percebi que era um guardião depois que já tinha acabado a luta. Isso tira um pouco do impacto dramático que essas batalhas poderiam ter, considerando o peso narrativo das localidades que representam. Mesmo assim, a mecânica funciona: limpar loops muda pequenas coisas no mapa, libera itens e contribui para o sentimento de progresso tangível.

“No início, Remi aprende que armas convencionais são inúteis contra os Hollow; ele então constrói um arsenal de armas ‘límbicas’ com propriedades especiais — espadas, machados duplos, alabardas — cada uma com pontos fortes e fracos.” — Lucas Amaral

Combate e sistemas: ingredientes bons que não se fundem totalmente

Se você gosta de jogos que oferecem combos, parries, rolamentos e ataques carregados, Hell is Us entrega o básico com competência. Há um kit de ferramentas padrão — combos corpo a corpo, ataques carregados, parry, dash, além de um drone que te acompanha e habilidades especiais. Onde o jogo tenta inovar é no tipo de arma e nos glyphs (runas) que você desbloqueia conforme ajuda civis e resolve puzzles: os glyphs trazem propriedades como Rage, Ecstasy, Terror e Grief, que alteram tanto a aparência quanto as habilidades disponíveis em cada arma. A combinação desses augments é legal na prática: eu adorei Rage para um estilo mais agressivo (permitia stagger e algumas opções de alcance), enquanto Terror se encaixou bem no meu segundo slot por permitir drenar vida de inimigos à distância.

O sistema de cura é uma diferença marcante: você regenera vida ao causar dano, mas só se “cadastrar” essa cura ao terminar um ataque ou combo sem levar dano entre eles. Em outras palavras, dano cura — contanto que você consiga completar uma sequência sem ser interrompido. É um conceito que incentiva agressividade e timing, mas acaba sendo uma faca de dois gumes: por um lado, me levou a jogar mais na ofensiva, confiando que um combo ou dois me trariam de volta à segurança; por outro, em encontros com inimigos que interrompem attacks ou fazem chain de hits, essa ingenuidade te leva ao fundo do poço. No final das contas, a mecânica é interessante e muda a abordagem de combate conforme você avança, obrigando a adaptação.

Apesar de tudo isso, o combate nunca me surpreendeu plenamente. Tem potencial — animações decentes, bons impactos, execução estilosa em algumas abates — mas a soma das partes não chega a um nível “wow”. As execuções que mudam a câmera tentam trazer um efeito cinematográfico, mas raramente me deixaram boquiaberto. Elas ajudam, são funcionais, mas não elevam o design base a algo memorável. Será que eu valorizo mais mecânica puramente técnica ou quero algo que pareça épico? E você, o que prefere em um combate?

Variedade de inimigos e chefes: um ponto fraco notável

Aqui a decepção aparece: o jogo tem apenas cinco tipos de Hollow visualmente distintos. É uma pena, porque o design deles é inspirado — há desde humanóides vazios com um buraco negro no peito até um tipo alado que arma zonas de dano — eu queria ver a equipe ser ainda mais criativa com bestiário. Em termos de chefes tradicionais, o jogo conta com apenas dois “bosses” ao longo dos três atos, o que reduz aquele pico de adrenalina que esperamos em momentos-chave. Existem arenas prolongadas e “gauntlets” que tentam simular encontros maiores, mas depois de repetir a fórmula várias vezes, elas perdem impacto.

Por outro lado, o elenco é complementado por 12 tipos de inimigos do tipo Haze — criaturinhas feitas de blocos coloridos com menos apelo visual, mas que ampliam a dificuldade. Na prática, são esses Haze que frequentemente complicaram encontros, porque podem ficar atrelados aos Hollow: o Hollow só perde vida quando o Haze conectado a ele é subjugado. Isso cria uma coreografia de combate interessante — primeiro abate os Haze, depois foca no Hollow antes que o Haze ressuscite — adicionando uma camada tática necessária àquele combate que, isoladamente, seria mais bobo.

A falta de variedade torna algumas áreas repetitivas, mas o jogo compensa com ambientes bem construídos, trechos de exploração intrigantes e puzzles integrados ao design de masmorras. Então a experiência nunca fica totalmente monótona; é só que poderia ser mais ousada.

Narrativa por meio de NPCs e diálogos
Uma das melhores sacadas do jogo é como cada NPC é uma peça no mosaico: perguntar sobre a guerra, sobre os Hollow ou sobre facções rende respostas diretas e muitas vezes perturbadoras. Essas falas ajudam a entender não só o que aconteceu, mas por que pessoas comuns se tornam cruéis, vingativas ou resignadas. É raro ver um jogo que trate com tanto cuidado a polifonia de vozes num cenário de guerra — e aqui isso é usado para aprofundar a atmosfera e o sentido moral do que acontece em Hadea. Não é todo dia que um jogo te obriga a pensar nas consequências humanas de um conflito enquanto você arruma engrenagens de puzzle.

O ritmo e o pacing
Outro ponto técnico: o ritmo de Hell is Us oscila. O primeiro ato abre relativamente linear e gradual, mas meio que se enrola no meio quando você fica sem pistas sobre para onde ir — se você não gosta de anotar, pode perder boa parte da motivação. Felizmente, na transição para os atos seguintes o jogo abre mais rotas, mais personagens que dão informação consistente, e sua própria familiaridade com a forma como o jogo “esconde” pistas melhora bastante a fluidez.

Quem deve jogar Hell is Us?
Se você gosta de jogos que misturam exploração investigativa, puzzles bem colocados e combate técnico porém honesto, Hell is Us tem muitos motivos para cativar. Se o seu foco é luta visceral, com combos profundos e variedade de inimigos exacerbada, pode acabar frustrado. Gosta de lore pesado, histórias sobre trauma coletivo e narrativa ambiental? Vai se sentir em casa. Prefere ação sem pausas e orientações claras o tempo todo? Prepare-se para improvisar e anotar.

Fechando os portões, olhando pro mapa (ou à falta dele)
No fim das ~38 horas que passei, Hell is Us me deixou com uma impressão ambivalente, no bom sentido. O jogo não é perfeito, mas é honesto — ele quer que você trabalhe pelo que descobre e entrega recompensas constantes para quem mergulha no processo. A falta de mapa é uma decisão de design que separa jogadores: pra alguns é charme e imersão; para outros, frustração. O combate tem ferramentas excelentes, mas falta aquele refinamento que faria as lutas vira obra-prima. Já a construção do mundo e das conversas com NPCs é o que realmente permanece na cabeça: imagens, relatos e propaganda que ficam com você depois que a última tela fecha.

Se eu tivesse que resumir em poucas palavras: Hell is Us é um jogo que vale a pena para quem procura uma experiência densa, com puzzles que desafiam sua memória e atenção, e uma narrativa que não tem medo de ser dura. Não espere um espetáculo de combate perfeito, espere um mundo que vai te encarar de volta e te perguntar em silêncio: o que torna alguém humano em meio ao horror?