O Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos (USPTO) abriu reexame da patente polêmica da Nintendo que descrevia basicamente o ato de “invocar um personagem e deixá-lo lutar” — algo que descreve de forma resumida a essência dos jogos da série Pokémon. A decisão veio depois de uma enxurrada de críticas de especialistas em propriedade intelectual, e coloca em xeque não só essa patente específica, mas a credibilidade do sistema de patentes quando aplicado a mecânicas de jogo consolidadas há décadas. Como isso afeta jogadores, estúdios indie e a indústria no Brasil? Vamos destrinchar os pontos mais importantes e suas consequências práticas.
Em setembro, a patente EUA nº 12,403,397 — apelidada de “patente 397” — foi inicialmente concedida à Nintendo sem objeções públicas. A descrição técnica resumida diz respeito a controlar o movimento de um personagem em um espaço virtual, fazer surgir um “subcharacter” no campo, e alternar entre modos de batalha manual e automático dependendo da presença de inimigos. Isso soa familiar? Claro. É exatamente o núcleo de jogos como Pokémon, mas também de títulos como Persona, Digimon e até alguns elementos de RPGs de ação modernos. É um conceito que muitos consideram tão genérico que não deveria ser patenteável.
A reação de especialistas não demorou. O analista Florian Mueller disse nas redes sociais que a Nintendo “nunca deveria ter recebido essa patente”. “A Nintendo nunca deveria ter recebido uma patente ‘invocar personagem e deixá-lo lutar’ em primeiro lugar” – Florian Mueller. Já o advogado especializado em patentes de videogame Kirk Sigmon afirmou ao PC Gamer que “essas reivindicações de forma alguma eram admissíveis”. Essas críticas públicas, somadas ao debate crescente sobre o papel do USPTO, levaram o novo diretor do escritório, John A. Squires — nomeado por Donald Trump e no cargo desde setembro — a ordenar um reexame administrativo.
O próprio Squires descreveu as reivindicações problemáticas em termos detalhados, e essa fala foi incluída na ordem de reexame: “A patente ‘397 foi emitida com reivindicações relativas ao controle do movimento de um personagem jogador em um campo de espaço virtual, causando a aparição de um subcharacter no campo, controlando uma batalha em modo manual quando um personagem inimigo está presente no local onde o subcharacter apareceu, e quando um personagem inimigo não está presente no local onde o subcharacter apareceu, mover automaticamente o subcharacter, e controlar uma batalha em modo automático quando um personagem inimigo é colocado em um local designado.” – John A. Squires. Squires também apontou duas aplicações anteriores nos EUA — uma da Konami de 2002 e outra da própria Nintendo de 2019 — como “prior art” que levantam questões substanciais sobre a patenteabilidade das reivindicações.
Por que isso importa? No Brasil, assim como no resto do mundo, desenvolvedores e publishers podem enfrentar reivindicações de patentes que afetam mecânicas básicas de jogo. Quando uma mecânica consagrada vira objeto de patente, o custo para inovar e até para lançar jogos similares aumenta — especialmente para estúdios independentes. O reexame do USPTO sinaliza que o escritório reconheceu a possibilidade de erro na concessão e que referências históricas (games anteriores, documentação técnica e patentes pré-existentes) são relevantes para avaliar a novidade da invenção.
No caso específico entre Nintendo e Pocketpair — desenvolvedora do Palworld — a reabertura do processo pelo USPTO chega num momento delicado. A disputa já vinha se intensificando em várias frentes: no Japão, o Escritório de Patentes japonês (JPO) rejeitou recentemente uma das patentes da Nintendo relacionada à captura de monstros por falta de originalidade, citando jogos como ARK (2015), Monster Hunter 4 (2013) e Kantai Collection (2013) como referências históricas que antecipavam elementos da reivindicação. A defesa da Pocketpair também apontou jogos como Craftopia (2020) e Pokémon Go (2016) para argumentar que a ideia não era nova.
A estratégia da Nintendo de arquivar divisional patents em 2024 — depois do lançamento do Palworld — levantou suspeitas de que as patentes foram ajustadas para mirar especificamente no jogo da Pocketpair. Desde então, Pocketpair implementou alterações em Palworld: em novembro de 2024 removeu a mecânica de lançar esferas que funcionavam como “Pokéballs” — hoje os Pals simplesmente surgem ao seu lado — e em maio mudou a mecânica de planar com Pals para usar equipamentos buffados, em vez de “agarrar” a criatura diretamente. São mudanças práticas para reduzir risco legal, mas que também impactam design e experiência do jogador. Ainda assim, o estúdio segue atualizando o jogo enquanto a disputa corre.
John “Bucky” Buckley, diretor de comunicação da Pocketpair, comentou sobre o processo e o choque inicial do estúdio: “Veio como um choque para nós e foi algo que ninguém esperava” – John ‘Bucky’ Buckley. Por outro lado, figuras do cenário nipônico também se manifestaram criticando a Pocketpair; o ex-desenvolvedor da Capcom Yoshiki Okamoto afirmou que Palworld “ultrapassou uma linha que não deveria ser cruzada”, gerando reações contrárias do público. “O Palworld cruzou uma linha que não deveria ser cruzada, e eu não quero que o mundo se torne um lugar onde isso seja aceitável” – Yoshiki Okamoto.
O que esperar agora? O reexame não é uma revogação automática, mas aumenta a probabilidade de que a patente seja reconsiderada e possivelmente cancelada — especialmente porque Squires identificou documentos de “prior art” que podem ser decisivos. A Nintendo tem dois meses para responder ao USPTO. E isso tem reflexo prático: decisões no tribunal de Tóquio (liderado pelo juiz Motoyuki Nakashima) e movimentos do JPO indicam que a maré pode estar mudando contra reivindicações excessivamente abrangentes.
Para o público brasileiro e desenvolvedores locais, há algumas lições claras: 1) documente tudo — jogos que servem de inspiração, datas, demonstrações e testes são essenciais se precisar contestar patentes; 2) fique atento a patches que alterem mecânicas para reduzir risco legal; 3) este caso mostra que mesmo grandes empresas não têm patente garantida se houver histórico técnico que contradiga a novidade reclamada. Queremos um mercado onde criatividade e experimentação não sejam sufocadas por patentes genéricas, certo?
No fim das contas, a reabertura do processo no USPTO é uma vitória temporária para quem critica a expansão de patentes de gameplay e um aviso para grandes estúdios: o debate sobre o que é realmente patenteável em jogos está longe de terminar. Resta acompanhar a resposta da Nintendo, o posicionamento final do USPTO e os desdobramentos judiciais no Japão — e, claro, ver como tudo isso vai influenciar o futuro das mecânicas que jogamos e amamos.