Introdução
Desde que terminei o remake de Silent Hill 2 pela Bloober Team em 2024, sempre fiquei de olhos bem abertos para o próximo capítulo da franquia. Quando soube que o estúdio taiwanês Neobards entraria nessa jornada com Silent Hill f, confesso que bateu aquele friozinho na espinha: seria possível igualar o nível de qualidade e polimento entregue pelo time polonês? Depois de rodar horas explorando as ruas desertas de Ebisugaoka, no Japão rural dos anos 60, a resposta já está gravada em cada tomada de neblina densa e em cada file de documentos espalhados pelo cenário. Espíritos à parte, o universo de Silent Hill f oferece gráficos caprichados, combates detalhados e uma narrativa envolvente que honra a tradição da série, mas embaralha tudo em um pacote novo e refrescante.
Imersão na vila de Ebisugaoka
Ao chegar em Ebisugaoka, a primeira impressão é de total autenticidade: ruas estreitas muradas por casas de madeira com telhados de zinco, bicicletas largadas em frente a lojas de doces e caixas de correio enferrujadas. Cada objeto parece contar uma história — afinal, bibliotecas de PDFs ou textos expositivos ficam ocultas atrás de cada pote de flores e cartaz municipal. Andar por ali sem interface visível e com a câmera sobre o ombro constrói uma sensação de mergulho completo que poucos jogos conseguem reproduzir hoje em dia.
Você se pega observando detalhes como corrimões de concreto seguindo ladeiras ou caminhos entre arrozais, formando um labirinto orgânico que incentiva a exploração. Os arquivos que você coleta não aparecem como notas genéricas, mas sim como papéis amarelados que relatam a glória passada de uma cidade mineradora e os hábitos profundamente enraizados em crenças xintoístas. Será que dá para engolir um jogo de terror cujo town building é tão bem bolado? A resposta, para mim, só veio passando horas por aquela névoa que cobre a vila.
Nesse contexto, Ebisugaoka funciona tanto como cenário de walking simulator — remetendo a Everybody’s Gone to the Rapture — quanto como palco ideal para sustos calculados. Portas entreabertas e janelas convidativas sinalizam que algo está fora do lugar, e as trilhas sonoras submersas no ambiente ajudam a manter o jogador sempre alerta.
Uma narrativa de horror atmosférico
A protagonista é a estudante do Ensino Médio Hinako, que sai de casa após levar uma bronca do pai bêbado e se encontra com as amigas na loja de doces local. Logo o grupo percebe que a pacata vila guarda segredos bem obscuros: criaturas começam a aparecer, e Hinako acaba empunhando o icônico cano de ferro da série.
“O horror japonês não se sustenta apenas na ameaça de morte, mas sim em cenas que te deixam desconfortável por parecerem ‘erradas’”, explica Ryukishi07, o roteirista de Silent Hill f. Essa frase traduz a essência da nova aventura: não são apenas monstros com ranço de correntes, mas personagens e situações que parecem deslocados na rotina de uma cidade esquecida pelas facilidades modernas — e é justamente aí que mora o terror.
Diálogos corriqueiros se transformam em provocações surreais em um piscar de olhos, e cada quebra-cabeça revela traumas da infância de Hinako, como o medo de espantalhos em um campo enevoado. Ao investir em micro-histórias e momentos de tensão calculada, o game entrega um pacing que os fãs de horror psicológico vão devorar com entusiasmo.
Combate e gerenciamento de recursos
Assim que Hinako pega o primeiro cano de ferro, fica claro que todas as batalhas são corpo a corpo. Facas de cozinha, bastões de beisebol e pás aparecem distribuídos no mapa, e você pode levar até três armas simultaneamente. O grande trunfo desse combate é o sistema de durabilidade: as ferramentas mudam de forma quando estão prestes a quebrar — basta reparar o cano torto para saber que você está se aproximando do fim de sua vida útil. Esse recurso funciona como parte essencial da gestão de suprimentos, uma mecânica que lembra clássicos do gênero survival horror, só que sem balas sobrando no bolso.
Para consertar suas armas, você precisa usar kits de reparo que são escassos por design, forçando escolhas diretas entre explorar áreas perigosas ou mandar o material acumulado para uma moeda interna nos pontos de salvamento. Com essa grana, é possível aumentar atributos de Hinako ou adquirir amuletos que oferecem buffs específicos. Essa troca — “meu equipamento usado pela possibilidade de melhorar meu desempenho” — soa óbvia, mas é tão bem equilibrada que a cada saída de um save point você se sente recompensado por planejar cada passo.
Desafios, modos de dificuldade e inspiração Soulslike
Por padrão, os arquivos dão dicas sutis que suscitam “vontade” de resolver o enigma sem entregar a solução na bandeja. Kombinando isso ao combate, você enfrenta inimigos que não dropam experiência nem recursos, o que desestimula a luta gratuita — mas é hora ou outra você vai se arriscar, afinal, derrotar monstros libera espaço para explorar áreas sem ter que correr o tempo todo.
O combate segue uma lógica parecida com o remake de Silent Hill 2, porém com um toque extra: há rolamento com o botão círculo do DualSense, ataque leve no R1 e ataque pesado no R2, resultando em animações lentas e realistas que dão o impacto de cada golpe. O diferencial está no sistema de contra-ataque e no Focus Mode, ativado por L2. Enquanto você mantém o gatilho pressionado, sinais aparecem acima dos inimigos para indicar janelas de contra-ataque, e a barra de energia mental se carrega, liberando ataques mais fortes que atordoam o alvo.
“O foco não foi fazer um Soulslike, mas sim aproveitar a popularidade de combates mais exigentes”, revela Motoi Okamoto, produtor da série. Ainda assim, vencer chefes lembra bastante a curva de aprendizado de jogos como Sekiro: Shadows Die Twice — sem exigir reflexo de ninja, mas pedindo atenção aos padrões de ataque e muita paciência para entender o timing.
O reino alternativo e armas tradicionais
Sem abandonar o DNA de Silent Hill, o jogo apresenta uma dimensão paralela inspirada no Japão clássico — um plano onde santuários e figuras mascaradas conduzem Hinako por terrenos silenciosos. Lá, surgem armas como a naginata, uma espécie de alabarda japonesa que não se quebra, mas também não pode ser levada de volta a Ebisugaoka.
Esse contraste entre realidade e outra realidade alarga o leque de gameplay: você pode trocar o martelo de ferro por lâminas curvas e encarar desafios exclusivos de cada mundo. A noção de “mundos sobrepostos” se renova, entregando seções cheias de tensão e surpresa.
O caderno de Hinako e múltiplos finais
Logo no começo, Hinako recebe um caderno que funciona como enciclopédia dinâmica. Ele reúne perfis de personagens, lembretes de pontos de interesse e até registros de eventos que acontecem ao longo da história. E o que parece um simples compêndio se transforma em fonte de detalhes extras, já que textos adicionais são destravados conforme você avança. Às vezes, essas anotações contradizem a sua percepção inicial, alimentando a ideia de que nada é exatamente o que parece.
O caderno também serve de base para ramificações de roteiro: Silent Hill f traz diversos finais, incluindo o famoso “UFO ending”. Seus atos (e suas decisões — como resolver ou ignorar puzzles) moldam o desfecho, garantindo várias horas de jogo para quem quiser caçar 100% dos arquivos e descobrir todas as rotas narrativas.
Explorando a escola: um dungeon memorável
Uma parte marcante da demo que joguei se passa em uma velha escola de madeira, com salas de aula, corredores apertados e um mapa que Hinako risca à mão sempre que encontra um cadeado ou uma passagem secreta. Lembra bastante o estilo de Silent Hill 2 nos prédios abandonados: um misto de quebra-cabeça e enfrentar inimigos pelo caminho.
Resolver puzzles como achar chaves e destravar portas gera um ritmo orgânico, entre tensão e calmaria. A atmosfera ganha reforço com réguas de madeira rangendo e um sussurro ocasional lembrando que nenhum aluno ou professor está por perto. Em um momento de metalinguagem, Hinako até comenta: “Faz tempo que não piso nesse lugar desde a formatura”, trazendo ainda mais vida ao cenário.
Pensou que acabava ali? Não. Nos momentos de clímax, um suposto chefe se revela uma fuga desenfreada pelos corredores, reforçando a sensação de fragilidade da personagem diante de horrores inesperados.
Para onde damos o próximo passo?
Será que Konami poderia confiar outra propriedade da série a um estúdio pouco conhecido? Depois da experiência em Ebisugaoka e do sólido sistema de combate, minha aposta é que esse modelo de desenvolvimento misturando talentos internacionais pode render bons frutos — quem diria, hein?
No fim das contas, Silent Hill f se mostra um prato cheio para quem, assim como eu, valoriza mundo aberto com atmosfera claustrofóbica, mecânicas profundas de sobrevivência, puzzles inteligentes e chefes desafiadores. Se o remake de Silent Hill 2 foi um dos melhores jogos de 2024, este spin-off tem tudo para brigar por game do ano em 2025, seja no PlayStation 5, Xbox Series X|S ou no bom e velho PC.