Silent Hill f chega prometendo não só respeito à herança da franquia, mas uma reinvenção corajosa: nova protagonista, cenário inédito no Japão dos anos 1960, e uma abordagem de combate focada exclusivamente em armas brancas. Eu, que venho de uma predileção por shooters competitivos e sou exigente com responsividade e sensação de combate, encarei essa proposta com curiosidade e um pé atrás. No fim das contas, Silent Hill f acerta em quase tudo que importa para a experiência narrativa e ambiental — mas tropeça onde eu mais esperava que brilhasse: o combate corpo a corpo. Vamos destrinchar onde o jogo funciona, onde falha e por que ainda vale a pena se você curte horror com identidade própria.
Um lugar tão vivo quanto aterrorizante
O que mais me surpreendeu foi a atenção ao cenário. Ebisugaoka, a vila fictícia onde a trama se passa, não é uma cópia estéril da cidade americana que consagrou a série: é um lugar com sabor local, texturas de ambiente distintas e uma sensação de época verossímil. Desde campos de arroz enlameados até garrafas de ramune e puzzles baseados em folclore, cada canto transmite que os desenvolvedores fizeram a lição de casa. Isso cria uma empatia imediata com o mundo — algo raro quando jogos tentam reimaginar universos consagrados.
A ambientação visual e sonora faz muito do trabalho pesado. O jogo usa névoa, distorções visuais e áudio direcional para empurrar constante desconforto. Não é só decoração: os elementos culturais ajudam a ancorar a narrativa da protagonista, Hinako Shimizu, cuja vida pessoal é minuciosamente exposta por cartas, diários e notas que você encontra em cenários. Isso transforma exploração em investigação emocional — não apenas buscar a próxima chave.
Silent Hill f constrói atmosfera com uma paciência cirúrgica: cada som, cada porta rangendo e cada objeto deslocado contribui para contar a história.
Hinako: protagonista com camadas
Hinako é uma mudança refrescante na linhagem de protagonistas da série. Jovem, feminina e marcada por abuso doméstico, ela evita a caricatura da vítima passiva. Em vez disso, a narrativa a empurra para se tornar agente da própria história. A transição de uma adolescente abatida para alguém que confronta tanto horrores reais quanto psicológicos é bem escrita e geralmente coerente com as mecânicas do jogo.
A exploração das temáticas — discriminação de gênero, abuso infantil, dependência química — não é superficial. Tais tópicos são desdobrados através de simbolismo e encontros metafóricos que dialogam diretamente com a psicologia de Hinako. Em vários momentos, você precisa juntar peças do passado para entender o presente, e isso funciona muito bem como motor narrativo.
“O que se desenrola é uma aventura totalmente absorvente, bem ritmada e cheia de surpresas, incluindo momentos genuinamente perturbadores de horror corporal e tortura.” – Tristan
Combate: potencial desperdiçado
Aqui vamos ao ponto mais polêmico: o combate corpo a corpo. Silent Hill f opta por uma decisão de design arriscada — abrir mão de armas de fogo em favor de armas brancas quebráveis, stamina limitada e uma mecânica de sanidade que penaliza uso excessivo de técnicas especiais. No papel isso parece ótimo para intensificar vulnerabilidade. Na prática, a execução revela várias arestas.
O sistema base envolve ataques leves e pesados, dash/dodge, bloqueio (com armas pesadas) e uma habilidade de foco que permite golpes carregados e contra-ataques, porém à custa de sanity (sanidade). A sanidade é um recurso crítico: se esvaziar, Hinako fica suscetível tanto a dano físico quanto a ataques psicológicos. Isso adiciona uma tensão interessante, mas o custo de ativar movimentos especiais muitas vezes transforma confrontos em uma dança calculada demais — e exaustiva.
Vários problemas técnicos e de design se somam a isso:
– Barra de stamina excessivamente restritiva que interrompe combos e ritmo.
– Armas quebram rápido e a gestão de ferramentas de reparo é frustrante.
– Animações com pausas entre golpes que deixam você batendo no botão sem retorno imediato.
– IA que se perde: inimigos que perdem interesse facilmente ou conseguem acertar através de geometria de cenário.
– Falta da sensação de recompensa: matar inimigos raramente traz bons ganhos concretos (recursos, XP etc.), o que torna o confronto uma troca frequentemente desfavorável.
O combate de Silent Hill f é tudo risco e pouca recompensa — muitas vezes é mais eficiente (e menos irritante) contornar os inimigos do que enfrentá-los.
A consequência é clara: eu fugia de encontros quando podia. As lutas que exigem matar tudo no caminho no final da história são, portanto, um choque de design — fases que até então permitiam passar com relativa facilidade se transformam em seções do tipo “mata todos os inimigos” onde a repetição do sistema se torna enfadonha.
Inimigos e design de monstros
Quando o assunto é criação de monstros, Silent Hill f entrega. Os designers foram além do repertório clássico e trouxeram trajes que dialogam com a narrativa pessoal de Hinako: bonecas-manifestações com facas, espantalhos que “jogam o estátua” até você virar as costas — lembrando jogos de jump-scare, mas com intenção estética — e criaturas repulsivas que parecem amontoados de carne fermentada que geram inimigos menores. Visualmente, muitos desses designs são brilhantes e aterradores.
O problema é que a experiência de lutar contra essas criações não corresponde ao impacto visual. O jogo quer que você sinta repulsa e medo nas lutas, mas o resultado é frustração pela necessidade de golpes repetidos com armas frágeis. Além disso, os melhores momentos de design de inimigos — transformações bizarras, movimentos imprevisíveis — perdem força quando a IA permite que você simplesmente contorne ou esconda-se até o inimigo “esquecer” de te perseguir.
Reino do santuário: beleza e poder ambíguo
O reino do santuário, povoado por portais Torii e lanternas, é a resposta do jogo às seções oníricas. Visualmente é um dos pontos mais fortes: contrastes de cor, simbolismo xintoísta e a figura enigmática do “Fox Mask” (homem com máscara de raposa) compõem níveis que são ao mesmo tempo sinistros e esteticamente impressionantes.
Nestes trechos, Hinako recebe armas indestrutíveis e poderes temporários. Isso resolve o problema de dureza das armas no mundo real, mas introduz outro desbalanceamento: a protagonista fica poderosa demais. A progressão de poder é temática — faz sentido que, ao penetrar no santuário, ela ganhe força espiritual — mas do ponto de vista de gameplay, essas seções às vezes tiram a tensão característica do survival horror.
Além disso, o sistema de inventário cria atritos: ferramentas de reparo de armas são úteis no mundo “real”, mas inúteis no santuário. Não há um depósito nos pontos de salvamento do tipo xintoísta para deixar itens que façam sentido apenas no outro mundo. Isso força escolhas de inventário que não funcionam bem com a alternância entre mundos, uma limitação que poderia ser facilmente suavizada com um ajuste de design.
“Senti que, nas seções do santuário, menos vulnerabilidade significava menos terror — passei a me sentir mais como o lobo do que como uma Chapeuzinho Vermelha vulnerável.” – Tristan
Puzzles e narrativa: o ponto alto
Se o combate decepciona, os puzzles e a construção narrativa compensam — e muito. Silent Hill f usa enigmas não apenas como obstáculos, mas como meios de revelar história. Puzzles baseados em tempo (calendários que permitem pular entre períodos temporais), mausoléus com símbolos locais e sequências de caça ao tesouro foram, sem dúvida, as partes que mais me envolveram intelectualmente.
Jogando no nível de puzzle difícil, você realmente precisa ler diários e anotações para avançar. Isso é ótimo: incentiva exploração cuidadosa e recompensa atenção aos detalhes. Há boa variedade e muitas soluções elegantes que se entrelaçam com o tema do jogo. Se a sequência futura da franquia explorar esse lado com menos foco em combate tedioso, teremos algo especial.
Os chefes do santuário também merecem destaque. Embora sigam o mesmo esquema de combate do resto do jogo, os encontros são coreografados e criam momentos cinematográficos que lembram jogos como Elden Ring em termos de espetáculo. Não são punitivos como em certos soulslike, mas oferecem ritmo e estratégia com padrões de ataque que você precisa aprender.
Rejogabilidade e New Game+
Silent Hill f dá motivos reais para voltar. O New Game+ não se limita apenas a mais finais; adiciona novos interiores, documentos que expandem a trama, cutscenes estendidas e armas poderosas via caça ao tesouro — e até chefes adicionais. Isso indica um comportamento de design que privilegia múltiplos passeios pela experiência, entregando pedaços de história e gameplay que permanecem ocultos na primeira jornada.
No entanto, a decisão de colocar mecânicas de combate que eu considero medianas como base do jogo pode reduzir a vontade de repetir. Ainda assim, se você é fã de narrativa e puzzles, o New Game+ representa uma oportunidade atraente de desenterrar outras leituras de Hinako e do santuário. Eu mesmo já estou no meio da segunda jogada e notei diferenças significativas que justificam o retorno.
Performance, gráficos e sensações técnicas
Falando como entusiasta de consoles e PC, Silent Hill f se comporta bem nos aspectos técnicos essenciais. Em consoles de nova geração (como o meu Xbox Series X), o jogo entrega visuais detalhados, iluminação atmosférica competente e uma paleta que mistura tons sujos com flashes saturados no santuário. No PC, há opções para ajustar fidelidade e desempenho, o que é importante para um jogo que depende tanto de atmosfera imersiva.
Não é um espetáculo técnico do tipo “referência absoluta”, mas em termos de otimização e polimento, o jogo é sólido. O áudio direcional funciona muito bem em fones; a ambiência e os efeitos sonoros compõem metade da experiência de medo. Já pequenos problemas de clipping em colisões e algumas animações de transição poderiam ser refinadas, mas não chegam a quebrar a imersão de maneira crítica.
Onde o jogo brilhou mais pra mim
– Mundo e ambientação: Ebisugaoka é uma das localidades mais bem realizadas da série, cheia de personalidade e história.
– Narrativa e personagens: Hinako é uma protagonista com camadas, e a abordagem dos temas é madura.
– Puzzles: Inteligentes, integrados à história e recompensadores.
– Design de inimigos: Criações grotescas e memoráveis, ótimas do ponto de vista visual e narrativo.
– New Game+: Conteúdo adicional relevante que incentiva a rejogabilidade.
E onde ficou devendo
– Combate corpo a corpo: sensação de peso ruim, gestão excessiva de recursos e pouco retorno pelos confrontos.
– IA inconsistente: inimigos que perdem o rastro facilmente ou acertam através do cenário.
– Inventário e logística entre mundos: probleminhas que atrapalham a fluidez.
– Desbalanceamento nas seções do santuário: poder excessivo em detrimento de tensão.
Silent Hill f é, no fim das contas, uma experiência corajosa. Gosta de tomar riscos narrativos e de ambientação, e em muitos quesitos acerta em cheio. Entretanto, a opção de mergulhar o jogo em combate corpo a corpo com durabilidade de armas e uma barra de stamina punitiva foi uma escolha que limita o potencial de tensão e diversão em vários trechos. Para quem prioriza narrativa, puzzles e ambientação, Silent Hill f oferece uma jornada de nove horas que compensa, e ainda é uma excelente porta de entrada para revisitar a franquia sob uma perspectiva nova. Para quem espera um survival horror inspirado nas sensações rápidas e recompensadoras de um tiroteio clássico, pode haver frustração.
No balanço final: Silent Hill f é um remake espiritual no sentido de respeitar o DNA da série enquanto cria sua própria identidade. É um jogo que eu recomendo para jogadores que valorizam atmosfera, narrativa forte e enigmas bem construídos — e que estejam dispostos a tolerar um combate que exige paciência e um pouco de sacrifício. E você, prefere terror que te força a fugir e esconder, ou quer enfrentar os horrores com as próprias mãos?