A primeira coisa que bate ao jogar Hollow Knight: Silksong é a sensação de déjà vu — mas não com o jogo original, e sim com outro monstro sagrado dos videogames: Bloodborne. Não é só uma inspiração estética; Silksong pega várias soluções de design que ficaram famosas nos jogos da FromSoftware e as encaixa no seu Metroidvania com uma precisão que chega a ser perturbadora. Será homenagem, empréstimo consciente ou evolução? Vamos destrinchar isso com calma, olhando tanto para o que é visível na tela quanto para as mudanças finas de mecânica que alteram completamente como você joga.
Ecos narrativos e visuais
A comparação começa no visual e no tom. Pharloom — o mundo de Silksong — tem cantos inteiros que parecem ter saído do mapa de Yharnam. Shellwood, com suas armadilhas e gaiolas suspensas, lembra o Forbidden Woods; Greymoor, um distrito cheio de moradores com roupas gastas, lanternas e objetos pontiagudos, evoca Central Yharnam; e a Citadel, núcleo político e religioso da cidade, funciona como a versão em seda da Healing Church. Não são coincidências cosméticas: são escolhas de design que gravitam em torno de religiosidade, sacrifício e transformação corporal.
Narrativamente, os paralelos também aparecem. Em Bloodborne, Yharnam é dilacerada por um surto que transforma habitantes em bestas, resultado de práticas de poder (o uso do sangue). Em Silksong, Pharloom sofre com uma “thread sickness” ligada à produção de seda na Citadel — poder também sendo uma fonte de corrupção. A missão aparentemente inocente de coletar um Twisted Bud para a criatura Greyroot termina com Hornet sendo abraçada, infectada e isolada — uma transferência de jogador para um novo bioma e uma nova condição de jogabilidade que lembra fortemente o encontro com os Snatchers e a consequente ida a dungeons em Bloodborne. Essas coincidências não são só referências visuais; elas alimentam a mesma pergunta central: até que ponto o poder vale a perda de si?
“O que é esse tremor dentro de você? Um escravo dentro de um escravo! Entregue sua carapaça a algo maior?” — NPC chamado Hermit
Jogabilidade: ritmo, risco e recompensa
Aqui é onde a semelhança vira análise profunda. Bloodborne não só mudou a estética da FromSoftware: ele reposicionou o foco do combate. Onde Dark Souls premiava paciência, leitura perfeita de padrões e posicionamento, Bloodborne acelerou tudo e incentivou a agressão, principalmente pela mecânica de “rally” (recuperar vida atacando logo após sofrer dano). Silksong faz algo conceitualmente parecido com o sistema de cura de Hornet.
No Hollow Knight original, a cura era incremental: você recuperava uma máscara de vida por vez, aproximando o jogo de um estilo mais defensivo e cadenciado. Em Silksong, Hornet pode curar no ar e no chão, chega inicialmente a regenerar até três máscaras — mas só quando o medidor de cura está completamente cheio. Isso muda a equação: curar virou uma janela que você precisa abrir atacando e se expondo, ao invés de uma segurança passiva. É a mesma filosofia de Bloodborne: se você quer saúde, precisa ir para cima do inimigo.
“Me pego jogando como em Hollow Knight, mas não funciona tão bem. Levar dano agora importa muito mais, já que a Hornet só cura com o medidor cheio. Nesse aspecto, é muito parecido com Bloodborne… Acho que jogadores novos têm vantagem por não precisarem desaprender o hábito do jogo antigo.” — usuário do Reddit
Silksong pede que você mude seus hábitos de combate; curar é um ato ativo, não uma rede de segurança. Hornet não é uma versão turbinada do Knight apenas na mobilidade: suas ferramentas novas (quickstep que vira corrida, super jump, dash aéreo, grappling, controle de queda com capa e ascensão por ventiladores) reforçam uma postura ofensiva e dinâmica. O jogo te dá ferramentas para ser agressivo e te expõe quando você tenta jogar do jeito “antigo”. Isso provoca duas reações naturais: frustração dos veteranos que precisam reaprender e um senso de liberdade para quem já se adapta a um ritmo mais rápido.
Como Bloodborne, Silksong transforma mortes que antes pareciam injustas em responsabilidade do jogador, porque as ferramentas para reagir já estão ali. A mobilidade rápida reduz o tempo que você fica vulnerável, permite posicionamento mais agressivo e faz as lutas fluírem mais como trocas de golpes frenéticas do que batalhas cadenciadas de xadrez.
Mas nem tudo são flores: as novas habilidades têm trade-offs claros. O pogo diagonal, por exemplo, exige um posicionamento mais atento; o super jump prende Hornet em uma trajetória que pode ser explorada por inimigos. E esses inimigos não foram deixados para trás — eles estão mais resistentes, com pool de movimentos maior e, frequentemente, dano maior por ataque. A consequência? Silksong fica, em muitos pontos, mais difícil — porém mais satisfatório. A escalada de dificuldade aqui é calibrada para quem domina o novo conjunto de deslocamentos e timings.
Design de boss também muda: Team Cherry pensou chefões que ficam fáceis quando você domina as novas habilidades, mas brutais caso você insista em jogar como no Hollow Knight original. Isso é design intencional, que recompensa adaptação e experimentação.
Ritmo, portanto, é o coração dessa comparação com Bloodborne. Não é só velocidade por velocidade; é velocidade com propósito: empurrar o jogador a tomar decisões rápidas e às vezes arriscadas para manter a vantagem.
Observação técnica: o sistema de checkpoints e “corps run” (mecânica de perder recursos ao morrer) mantém a alma do Metroidvania/Dark Souls híbrido, mas a forma de interagir com esses sistemas sofreu alterações que reforçam um loop de risco-recompensa mais agressivo.
Visualmente, a direção de arte também ajuda a comunicar mecânica. Áreas com armadilhas aéreas, ventiladores e várias plataformas pedem justamente o conjunto de movimentos de Hornet. Isso é design holístico: mundo e protagonista foram desenhados em conjunto para que uma ação pareça natural no ambiente.
A referência direta a Bloodborne (não apenas estética, mas filosofia de design) também serve para explicar por que muita gente sentiu que Silksong veio “mais rápido” do que Hollow Knight. É uma evolução concentrada: as mecânicas de mobilidade foram ampliadas e o resultado é um ritmo que converge com os jogos que sentimos como “mais modernos” em termos de combate.
Questões de dificuldade continuam polêmicas. Alguns vão achar que é “difícil demais” e gritarão por nerfs; outros dirão que é “git gud”. A verdade está no meio: Silksong exige adaptação, mas recompensa progresso com um prazer de combate semelhante ao que Bloodborne entregou a muitos jogadores — um prazer que vem de controlar o caos, não de evitá-lo.
Há também decisões narrativas que ecoam Bloodborne: itens que choram, crianças ou criaturas que se transformam, instituições religiosas com segredos e nascentes de poder que corrompem. Essas escolhas de tema não são pastiche: elas são convergentes porque exploram um mesmo conjunto de medos e metáforas — nascimentos monstros, perda de identidade, fé corrupta.
Do ponto de vista do jogador que curte shooters competitivos e jogos de ação — como quem escreve este texto — a mudança principal é: você vai gostar se curte precisão em meio ao caos, se prefere recompensas por reflexo e movimentação rápida. Hornet tem a mesma “pegada” de jogos onde o tempo de reação e a mobilidade definem vantagem, só que aplicada a um 2D artesanal com combate corpo a corpo e elementos de plataforma.
E quanto à longevidade? A aceleração no combate tende a aumentar rejogabilidade. Mecânicas que premiam diferentes estilos de abordagem geram runs mais variadas e descobertas de build e estrategia. Assim como Bloodborne tem várias formas de ser enfrentado dependendo do conjunto de armas e upgrade, Silksong parece projetado para oferecer variações que mantêm a experiência fresca após várias horas.
Do ponto de vista de design, há uma lição clara: evoluir um jogo clássico sem traí-lo passa por ajustar ritmo e ferramenta ao invés de apenas adicionar conteúdo. Team Cherry fez isso pensando: “o que Hornet precisa para ser interessante e distinta?” A resposta foi uma reformulação do ritmo e da forma como o jogo recompensa agressão e posicionamento — e isso ressoa diretamente com a abordagem que fez Bloodborne famoso.
No fim, a pergunta que fica é tão prática quanto provocativa: Silksong é um Bloodborne em 2D? Sim e não. Sim, porque herda e reinterpreta uma filosofia de design que favorece agressão, mobilidade e risco calculado. Não, porque mantém raízes do Metroidvania e de Hollow Knight na construção de mundo, exploração e progressão de habilidades. A soma das partes cria um híbrido que respeita ambas as origens sem se tornar cópia direta.
Se você é fã do Hollow Knight original e está se sentindo desconfortável com a necessidade de reaprender seu estilo, pergunte-se: vale a pena ficar preso à antiga forma de jogar, ou é hora de aceitar que um protagonista mais ágil pede uma postura diferente? Já para quem nunca jogou o primeiro, Silksong pode parecer, simplesmente, um Metroidvania moderno com combate afiado e nervoso — e sem os preconceitos de “como se joga Hollow Knight”.
No fim das contas, Silksong funciona porque suas mudanças são coerentes: mundo, narrativa, inimigos e ferramentas convergem para um objetivo claro. Não é só sobre homenagear Bloodborne; é sobre usar aquilo que funcionou nele para melhorar uma experiência que já era excelente. E você — já começou a reaprender seus hábitos de combate ou ainda tenta curar como se estivesse na trilha do Knight?